Brasília, capital do Brasil

JORNAL DO BRASIL, 21 DE ABRIL DE 1997. Opinião.

PAULO DELGADO *

Quinta-feira passada, Brasília recebeu milhares de pessoas em marcha de protesto contra o governo federal, protagonizada pela urgente questão da reforma agrária. Brasileiros do campo se dirigiram – a pé – ao centro político e geográfico do país.

A marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, e todos os outros movimentos que com ele vieram, pode ser vista como um presente para Brasília nos seus 37 anos, completados neste 21 de abril. Como se fosse um livro presenteado no seu aniversário e cuja leitura nos fizesse sair desse isolamento em que a capital se meteu e pensar… na vida, na polis.

Brasília é a capital do Brasil. A inflexão de gênero que o nome da cidade ganhou como que ajuda a lembrar de sua condição de capital de todos os brasileiros. Os homens e mulheres que para lá foram construir a nova capital tiveram seu esforço acompanhado por olhares de todos os cantos do país. Muitos ficaram e o Distrito Federal tornou-se a sua terra e de seus filhos. Mas a condição especial de Brasília não pode ser esquecida e, quem lá mora e constrói a vida, tem que dividir sua cidadania com milhões de brasileiros.

O sonho de transferir a capital do Brasil do litoral para o interior é muito anterior à própria construção de Brasília. A Constituição de 1891, a primeira republicana, já demarcava, no Planalto Central, a localização da nova capital. A escolha do centro geográfico do país para sediar o centro político traduzia o esforço de integração nacional que os anos 50 protagonizaram. Além disso, não é possível esquecer o destino final desta integração, o projeto mais ambicioso de alcançar a fronteira sul-americana pelo Oeste, fazendo com que também no nosso país o Atlântico e o Pacífico pudessem se encontrar.

Da euforia da inauguração até hoje, a capital federal cresceu e adquiriu os problemas de uma cidade em expansão. Viveu todo o ciclo da ditadura militar e dele herdou os vícios administrativos e autoritários que os governos daquela época deixaram em todo o país, mais particularmente em Brasília, já que tão próxima, coração do poder e, portanto, possivelmente sentida como propriedade dos donos do poder.

Aliás, ao procurar submeter Brasília ao silêncio da cidadania, proibindo o exercício eleitoral, os militares produziram no inconsciente da população uma certa recusa à cidadania especial. Por não poder nada, a Constituição de 88, desnecessariamente, deu a Brasília tudo. Não percebeu que quem vive e mora lá é um cidadão especial e, como tal, pode até perder alguns direitos, mas ganha outros, como morar na cidade mais importante do país e sentir de perto a efervescência da política e do poder. Não atentou, também, para o fato de que a democracia não se resolve exclusivamente pelos sistemas de representação e pertencimento clássicos. A cidade de todos os brasileiros vai aos poucos virando a cidade dos que moram em Brasília. A velha Guanabara tinha mais noção do seu papel.

Outras belas capitais do mundo, tão importantes como a nossa, talvez por não terem este carma militar a purgar em suas histórias, têm hoje, mais do que Brasília, uma estrutura política, administrativa e de cidadania mais adequada à grandiosidade de sua função. Lembremos de Buenos Aires, Washington, Londres, Paris, Roma, Madri, Tóquio, Otawa ou Camberra.

A autonomia absoluta de Brasília está refletida caricaturalmente em um fato simbólico: alguém conhece alguma capital de país no mundo em que não haja frota padronizada de táxi? Lá, a corporação, que não consegue pensar nacionalmente, recusou uma medida óbvia para que os táxis da capital federal possam ser, no mínimo, reconhecidos por qualquer brasileiro.

Se nenhum país ou município pertence a si próprio – e sim à sua população como um todo – muito menos uma capital pertence apenas aos seus moradores. Brasília não pode ser vista ou pensada como capital do Distrito Federal são um corpo só que, como o nome não deixa dúvidas, pertence à Federação, ao país, à nação, aos brasileiros.

O autonomismo, o eleitoralismo, o corporativismo e a expansão imobiliária são hoje os principais porta-vozes da estadualização de Brasília. O risco por trás deste projeto é, por exemplo, a Unesco se desinteressar pela dilapidação de um patrimônio mundial que se tornou estadual.

Traduzir as palavras pode ajudar a recuperar sentidos que se perderam com o passar do tempo. O distrito é menor unidade territorial que existe no país e todo município possui seus direitos. Todos os anos assistimos a processos de emancipações e dezenas de distritos tornam-se municípios. Mas nem à febre das emancipações Brasília pode aspirar, pois como quereria emancipar-se do Brasil?!

* Deputado federal do PT-MG.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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