Caderno em branco
O Globo, 29 de agosto de 2011.
Há um caderno em branco à espera das decisões da maioria dos juízes brasileiros, pronto para ser preenchido. Muitos não conseguirão escrever sua história nem contratando bons detetives ou especialistas em biografias. Todas as oscilações de personalidade (grandezas e fraquezas), consideradas normais em cidadãos comuns, quando se trata de um juiz, ficam estampadas na sua sentença. Especialmente se ele teme enfrentar privilegiados, pois sua decisão constitui-se sempre num recado da justiça sobre como deve ser a vida em sociedade. Discreto e justo será o magistrado cuja sentença reflete e contribui para fazer a vida mais justa e compreensível para a maioria. Mas o que temos visto é que a injustiça na distribuição da justiça é direito privado de alguns juízes.
A decisão do presidente da 1ª Região do Tribunal Regional Federal de confrontar o STF e considerar justo e legal que alguns funcionários possam receber mais do que o teto determinado pela Constituição brasileira demonstra que não é só a política que precisa de faxina. Não se trata de reconstituir a sociedade, como manda a lei, mas afundá-la mais ainda nos costumes arcaicos. Uma sentença do mundo do interesse, deslegitimadora do mundo do direito.
O que se constata é que a importância louvável que é ter medo de errar desaparece quando privilegiados estão próximos. Infelizmente, sobressai a preocupação de manter arejado o ambiente social onde poucos circulam e não levar ao colapso os costumes do privilégio. A intimidade cria um círculo de giz onde é impossível identificar a má reputação, pois em ambientes sociais restritos quem julga também pode ser julgado. Não há outra lei que não a da natureza das simpatias e afinidades grupais: quem acumula privilégios, por muito tempo, certamente já circulou demais entre quem, pelo poder e as indicações, também acumula distinção. Por isso nos ajustamentos emocionais entre as elites dos poderes do Estado, quando uma inesperada contestação judicial aparece, todos saem rapidamente à cata do rosto comum para se identificar. O privilégio é tão ostensivo que funciona como se fosse uma cicatriz, uma vantagem que só é desvantajosa fora do seu círculo de convivência.
Como são longos os anos em que foi desfrutado, passando por governos militares e civis de diversas ideologias, já é mesmo uma pele, um cabide de mazelas e situações desagradáveis, exemplificadas pelos que sobem na vida sem competição, burlam a lei, acumulam cargos, aposentam-se e voltam, ganhando cada vez mais. A proteção entre privilegiados é distribuída reciprocamente, e estes são como escadas de bordo, penduradas nos navios da impunidade. Nem precisam mais de advogados. Já vêm defendidos previamente. É a instituição que os tolera e contrata que os defende, pois não é a capacidade, é o privilégio seu atributo congênito. Assim, encorajados pela cumplicidade, é a pessoalidade, não a impessoalidade, o sinal exterior do seu sucesso. Mas é o trem da alegria do privilégio o velório de luxo da carreira do servidor público.
Até que alguém pilha estes magnatas das mesas, gabinetes, assessorias, tribunais e ministérios – seja um jornalista, um procurador, uma ação civil pública, um juiz independente – e eles descobrem que estão despreparados para viver sem alguma desvantagem comparativa, uma diferença, um privilégio. Protegidos pelo segredo como é guardada a lista com seus nomes, maior é o mistério de suas privilegiadas carreiras. Até é possível que muitos imaginem que dão a vida para a repartição da qual usufruem. Mas antes de devolverem aos cofres públicos o que receberam acima da lei, serem reenquadrados ou demitidos, encontram um Juiz que os protege. Como quem faz vida social com sua sentença, nos mais claros termos, escreve com todas as letras que acabar com o privilégio, constituído e selado pelo teste do tempo, atenta claramente contra a ordem pública, a ordem administrativa e põe de joelhos o normal funcionamento da repartição. São de sentenças como essa que se alimenta a volúpia do privilégio.
Paulo Delgado, sociólogo, foi deputado federal.