De que amanhã se trata?
É hora de uma instituição independente analisar os arquivos
Quanto mais luz mais sombra, alertava Nise da Silveira. São Bernardo, mil anos antes, dizia que de boas intenções o inferno estava cheio. São às vezes afoitas as maneiras de a política perceber a realidade ao querer transitar com desenvoltura pela alma da nação. Mesmo quando o objetivo é bom e as pessoas são de bem, como nesse caso, a opinião estatal sobre tudo é inimiga da temperança.
O Decreto do Plano Nacional de Direitos Humanos contém uma visão de mundo que ultrapassa a aptidão da administração pública. Sabemos que a polifonia de nosso povo é mais rica do que o senso de missão que brota da política. A dimensão do real e das evidências nem sempre é feita através de provas, comissões, inquéritos. Mais parâmetro, menos lei, ajuda a maturidade da nação.
É histórica e universal a evolução dos direitos humanos. Desde os direitos civis e políticos alcançados pela democracia, seguidos dos direitos econômicos e sociais distribuidores de bens e serviços. A terceira geração de direitos, mais coletivos, culturais, comunitários do que individuais – paz, progresso, fraternidade, ambiente limpo, não dogmatismo, verdade, solidariedade – depende mais da cidadania e do sistema imunológico da sociedade do que de terapias estatais.
Em nome disso é preciso frear as pequenas pátrias que todos temos dentro de nós.
Ou somos livres, ou nunca o seremos. A força de uma norma humanitária é sua aceitação universal e consuetudinária na plenitude do Estado de Direito. Onde é tecnicamente impossível, considerado o sistema de três poderes e o respeito à autonomia da sociedade, o Estado deve ser guardião, fiador e mediador.
É excessivo mudar nome de rua sem saber que estamos no mesmo país que optou por esquecer a face de ditador de Vargas, colaborador dos nazistas, para homenageá-lo em suas avenidas.
O mesmo país que foi honrado com o primeiro cardinalato da América do Sul e aceita o Vaticano como Estado. Qual a nossa mais forte memória espiritual? E o que fazer com o Cristo Redentor se a guerra de religião não se contentar somente em retirar crucifixos dos ambientes públicos e nos açoitar com a ideia de que laicismo é ateísmo de Estado? Vamos cassar nossa padroeira? O Congresso ficará mais honesto se parar de pedir a proteção de Deus para iniciar seus trabalhos? Catarina, Paulo, quê Espírito?… qual nome dar aos novos estados laicos do país?
Leis de anistia não visam à assimilação do mal. Não são como máquinas de lavar que transformam em não problema antigos figurinos e concedem o direito de voltar a vestir como limpas as roupas dos tempos sombrios. São inúmeras as vítimas, em diversos países, frustradas diante da lógica do sistema das Comissões de Verdade com ou sem Reconciliação. Reagiram através da recusa ou oposição à concessão de reparações. Aqui poderá ser assim: revolva o rancor e cruze o nome do torturador com o do torturado e veja qual a indenização recebida por tal ignomínia. Nenhum dos que mais sofreram estão entre os que receberam mais a título de reparação. Por quê nos recusamos a ver a igualdade moral do sofrimento dos perseguidos e os distinguimos em classes pelo valor das indenizações? Se o Estado é injusto ao fazer o bem imagine-o disposto a confrontar o mal?
Anistia, perdão, não é esquecimento, prescrição. Só fazem sentido se dirigidos justamente para o inesquecível, o imperdoável. São princípios filosóficos, paradoxos, da sabedoria, imunes a vícios de raciocínio e cálculo político. Assim entendeu e aceitou nosso país, anistiar e indultar, disposto a não mudar sua natureza sem ficar refém de revelações sem fim.
É hora de uma instituição independente analisar os arquivos do período!
Conta o Rabino Nilton Bonder que uma senhora muito idosa procurou um médico dizendo que não se sentia bem. O médico apressado e sem saber como ajuda-la lhe diz que não tem como torna-la mais jovem. Ela respondeu de imediato: Doutor, quem foi que lhe pediu para fazer-me mais jovem? Tudo o que quero é que possa me fazer mais velha!
É do amanhã que sempre se trata.