É só aparência
O Globo – 6 de Janeiro de 2013.
Se não for para medir o tempo, um relógio no palco desvia a atenção do espectador. Adereços e interpretação são poderosos veículos do cinema e do teatro. Na política incomodam e não dão conta de desafios.
Um Deus desatento observa a cena brasileira e continua tolerante com originalidades. Compreender menos é mais a moda do que compreender tudo. Caprichos e bastidores expulsam a moderação e a rotina do espetáculo. Glória da propaganda, a deusa da ignorância, que impôs ao país o tom da impetuosidade. Quando as questões públicas são tratadas em permanente estado de eloquência não queira entender o que está de fato ocorrendo.
Como toda pessoa desleixada, o país adora improvisação, intuição e experiências parciais. Como essa agora da multa pelo lixo na rua, muito boa iniciativa se o conceito de lixo se estendesse também para as calçadas irregulares definidas pelo interesse da garagem e não do pedestre. Ou para impedir a fratura exposta da cidade com sua farra de pedras soltas brotando de todos os lugares, bueiros armadilhas, misturados a esse asfalto deprimente que vira farofa de buraco por todo lado.
Sem paciência para a prevenção o policiamento ostensivo é só aparência. Parou na virtude da intenção e, intimidador, avisa que é dono do pedaço e da linha que traçou para cruzar. A calamidade dá-lhes prazer. É a infelicidade que patrulham em desrespeitosas abordagens; transmitem sensação de insegurança seus pelotões e comboios em passeata, carros sobre as calçadas, prontos para o exagero e a negligência, em hierarquias superpostas, luzes acessas, uniformes diversos, municipais, estaduais, federais, tornando um serviço relevante uma casta armada incompreensível.
A expansão urbana é sem limites, os adensamentos, desleixados, a autoridade intimidada por construtores que por razões desconhecidas de juízes nem se dão conta de que apodrecer a vida dos outros é tão fora da lei como se deixar apodrecer.
A regularização das favelas, se abertas à especulação imobiliária, melhor deixar como está; para não ver o Estado subjugado reconhecer escritura de invasão ilegal e perigosa de outrora ao bam-bam-bam invasor legal de agora, construtor de pensões para esses Lévi-Strauss démodés e fãs da frouxidão legal dos trópicos. A regularização em áreas de risco não pode ser reocupação, mas sim forma de dar legitimidade à indenização e desapropriação por interesse público, concedendo paz social à remoção, sem o teatrinho da circulação de classes nos morros.
É notória a melhora das coisas, mas se a pacificação chegou à cidade pobre é uma contradição ver a grade invadir calçadas para proteger prédios da cidade rica já tão protegida.
O Brasil precisa abandonar o jogo do teatro democrático, pensar a sério com o que se preocupar e botar um fim nesse progresso doloroso a que se acostumou.
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PAULO DELGADO é sociólogo.