ENTREVISTA – DEPUTADO PAULO DELGADO ‘A publicidade levou a nossa alma’
O Globo
Maria Lima
Chamado de embaixador por seu livre trânsito no meio diplomático, o decano da bancada do PT, o mineiro Paulo Delgado, disse ao GLOBO o que pensa dos erros do partido. Para ele, o PT errou na política de coalizão e perdeu a força para fazer as mudanças, exaurindo a liderança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva inutilmente. Delgado ajudou Lula a fundar o PT e foi seu companheiro de bancada na Constituinte. Aos 53 anos, está no quinto mandato. No discurso de posse de José Dirceu na Casa Civil, foi citado pelo então ministro como sua “consciência crítica”. Temendo agravar a crise interna, relutou em dar a entrevista, mas acabou aceitando. Para ele, a saída para o PT é esclarecer tudo. “Só a verdade nos salva.”
O senhor é um dos fundadores do PT. Como analisa agora a quebra desse paradigma da moralidade petista, do sonho de uma geração?
PAULO DELGADO: Entre bombeiros não se pisa na mangueira. O PT pode ter cometido um erro, mas tenho certeza que não cometeu um crime. Nossa história de crítica a tudo quando fomos oposição, considerando nos outros qualquer erro como má-fé ou crime, acabou dando nisso. Os deuses, quando morrem, voltam como doença. Muito do que fizemos era considerado certo mais pelo vigor da decisão do que pelo seu próprio conteúdo. Muitos dos que acusamos foram absolvidos pela Justiça. E hoje, por ironia, o PT precisa – mas parecemos não merecer – do benefício da dúvida. Só a verdade nos salva, porque fica em pé por si só.
Como a crise envolvendo o primeiro governo do PT chegou a esse ponto?
DELGADO: O problema vem desse modelo de gestão, do governo de coalizão que se tornou a característica da Nova República, em que se faz a partilha do Estado entre os partidos aliados. Não faz sentido que a empresa que cuida da correspondência do povo brasileiro (Correios) tenha que ser dirigida por um partido ou que a Petrobras seja dirigida por partidos.
Esse fatiamento do controle das empresas públicas cria os focos de corrupção?
DELGADO: O fator de estabilização do governo não contém os símbolos de mudança para os quais o povo votou no PT. A falta de sintonia entre a estabilidade política e o desejo de mudança é que nos enfiou no sistema que dizíamos combater.
A máquina do governo petista virou uma máquina igual à dos outros partidos?
DELGADO: Não. Temos um certo limite na capacidade de gestão que é uma tradição da esquerda. A esquerda tem mais tradição de tomada de decisão do que de implementação de programas e projetos. Quando você chega ao poder e é obrigado a construir uma base parlamentar que não contém os símbolos de mudança que o elegeram, os fatores de frustração são maiores do que os de admiração. Quando nós não enfrentamos a estrutura fisiológica do Estado, e aceitamos o jogo nesse terreno, o PT perdeu a força para fazer as mudanças. No primeiro ano exaurimos a liderança de Lula sem modernizar o Estado. Pelo contrário.
Quais problemas estruturais foram agravados?
DELGADO: Somos o segundo país do mundo com mais ministérios. Só somos menores que a Índia, que tem 40. Levamos ao extremo o tamanho da máquina da composição política.
Lula não conseguiu vencer essa estrutura?
DELGADO: Deveríamos ter enfrentado como a primeira medida a ser tomada: retirar da composição política a partilha do Estado, enxugar a máquina e ampliar a força do funcionário de carreira. Isso diminuiria os elementos de barganha. Não havia necessidade do pragmatismo da base homogênea, sem compromisso programático.
Qual seria a alternativa?
DELGADO: Se tivéssemos construído uma base social-democrata, de centro-esquerda, certamente teríamos mais capacidade parlamentar.
O que afastou o governo dos partidos de centro-esquerda?
DELGADO: Não havia elemento de barganha, não havia elemento de negociação substantivo na relação com os partidos de princípios, que trabalham com programas de projetos. Nosso governo agravou o deslocamento de poder da política para a economia construindo uma estrutura independente na moeda e no crédito. Hoje o Copom é a velha Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito) com reuniões mensais. Você imagina uma pessoa fazendo exame de sangue todo mês? Ou é para lucro do laboratório ou o sujeito está doente mesmo.
Esse poder paralelo da equipe econômica gerou mais um foco de atrito na base?
DELGADO: Atrito e frustrações. Enquanto a variável de ajuste da economia forem os juros e não o crescimento econômico, não tem fator de ampliação da base do governo para os setores mais progressistas. Os setores mais progressistas estão fora do processo de gestão do Estado. Como o Congresso precisava continuar funcionando, era preferível buscar no Congresso alianças domesticáveis, que não estivessem interessadas nos programas de governo.
Mas interessadas em nomeação e cargos?
DELGADO: Isso. Nosso governo tem uma característica antiparlamentar. Está sempre incomodado de sofrer influência do Parlamento. Não quer dialogar, quer pontificar sobre o Parlamento. Tem uma compreensão insuficiente da harmonia e da independência dos Poderes.
A falta de apetite do presidente Lula para negociar com o Parlamento agravou a crise?
DELGADO: A publicidade levou a nossa alma. O PT e o governo imaginaram que, isolando a economia da política, bastava entregar a política à publicidade. A partir da idéia de que a publicidade ostensivamente vai se imiscuindo em tudo, em estar explicando e justificando tudo, também criou uma ilusão no governo, de que bastava divulgar como positivo que seria visto como positivo. A publicidade na democracia também tem de ser objeto de fiscalização. O PT viveu isso desde o início. O guardião da virtude tem de ser virtuoso.
Desrespeitar essa máxima provocou a crise de credibilidade do PT?
DELGADO: Esse é o princípio que deve reger a política de um partido de esquerda , um partido popular O PT era o crítico feroz do comportamento dos outros, ele tinha que ter o mais austero dos comportamentos.
Faltou austeridade no PT governo?
DELGADO: Eu diria o seguinte: é difícil compreender que o censor passa a ser censurado. Que o guardião da virtude não seja virtuoso. Isso voltou como doença, como disse lá atrás. Não sei se o povo se voltou contra o PT. Será?
O que o senhor acha bom para o Brasil, um líder carismático ou um profissional?
DELGADO: O presidente Lula, com essa reforma, pode mostrar que quer ampliar a força dos profissionais no seu governo.
Para isso ele tem que se distanciar mais do PT?
DELGADO: Um outro fator de surpresa em alguns casos é essa fragilidade doutrinária e teórica do PT que apareceu no governo. Ficamos conhecidos como o partido das grandes formulações, dos grandes projetos. Não tem sentido nós não conseguirmos formular de maneira adequada os desafios.
O senhor criticou os que voltaram a falar em luta armada e ditadura. O senhor vê clima de conspiração e golpe?
DELGADO: A luta pela redemocratização foi feita predominantemente pelos brasileiros que não pegaram em armas. Então não devemos querer criar uma casta especial dos que pegaram em armas, até porque o símbolo é negativo hoje. O lema que o PT deve defender para a América Latina é mais democracia. E na democracia é mais importante responder do que reagir. O PT tem de esclarecer e responder a tudo o que está ocorrendo. Não cabe o discurso da conspiração e do golpe.
O que o senhor diz nas ruas para defender o que Lula defendeu em quatro campanhas?
DELGADO: Que é preciso preservar a verdade dos fatos, saber distinguir fato e notícia. Reconhecer o problema. A honra é a visão que o outro tem de você. Se o PT está sendo visto assim, tem que admitir que está sendo visto assim. Essa crise fere mais o petismo do que os petistas.
A volta do discurso belicoso, das galeras do deputado Chico Vigilante no retorno de José Dirceu à Câmara, não atrapalha ainda mais?
DELGADO: Não é o momento de claque e confronto. Nenhuma atitude conflitiva permite melhorar a reflexão sobre o que ocorre. Tem que aguardar o que vai acontecer. Confiar nas instituições, evitar manipulações e depois pensar como o Barão de Itararé: “Tudo seria fácil se não fossem as dificuldades”.