Juízes e seus destinos
O Globo – segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012.
Como é difícil compreender a dicção dos juízes. Felizmente, velhos erros podem produzir novas verdades, resignou-se o Supremo Tribunal Federal (STF) diante da realidade e autorizou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ampliar a investigação sobre o desvio de conduta de magistrados.
Há diferentes e difíceis maneiras de identificar o que é justiça. É mais fácil perceber o que é injustiça, especialmente as corrigíveis. Porque a justiça está fundamentalmente conectada ao modo como se comporta o juiz, guardião do comportamento dos outros.
Os problemas do Judiciário servem à vista e ao tato, basta querer ver sem medo de tocar. E é bom que os próprios juízes se deem conta do mérito das críticas que recebem e, assim, tenham preponderância sobre elas. A relevância da função e a elevada conduta da maioria dispensam o uso das expressões corporativas em sua defesa: “Interesses do Judiciário e da Magistratura” e “Direitos da classe dos juízes”. O que se busca são formas de combater a injustiça e alcançar a justiça para todos.
Um bom caminho para observar as características predominantes da sociedade é ver como funciona a distribuição das vantagens e desvantagens entre seus membros. Isto porque a renda e a riqueza acabaram se tornando os principais fatores de prestígio e sucesso no mundo atual. E tornou ridículos os que ainda falam em vocação ou prezam a conduta.
Há mais injustiça do que justiça quando a existência de vantagens, de alguns indivíduos sobre outros, por razões que não são de ordem econômica, produz imediata diferença de renda. Mas a sociedade aceita quando a relevância social da função justifica a remuneração relevante. No entanto, se qualquer comportamento individual dos membros de uma instituição é tolerado, não tem por que haver concurso para ser seu membro. Porque, se as regras internas de seu funcionamento não inibem a ação dos inadequados, é difícil defender sua relevância para todos.
Tornou-se difícil dizer em qual teoria do Direito ou da Justiça se baseiam a função e a conduta de um juiz. Qual o lugar da vocação, da escolha profissional motivada por senso de justiça, no melhoramento da convivência humana?
A solidificação da democracia depende do fortalecimento das instituições: públicas ou privadas. Mas não é indiferente, nem se sustenta, se não leva em conta o modo como as pessoas vivem. Ou seja, há momentos em que a indignação é mais transformadora do que o acordo de cavalheiros, se este pacifica instituições deformadas.
Qualquer autoridade que tenha a função de decidir sobre a vida dos outros tem, obrigatoriamente, que aceitar o cálculo de valorização de sua conduta por toda a sociedade. Do contrário, pressionada pelo coleguismo, reage como um sindicato, e tende a ignorar a força da justiça na solução dos problemas da desigualdade. Ou pior, não aceita para si o que determina para os outros.
A relevância do poder Judiciário não se ajusta à particularíssima noção de “instituição total”, fechada e impenetrável. Nem à ideia de conviver com regras especiais incompreensíveis para a maioria submetida a leis gerais. Muito menos considerar produto do seu único esforço uma atividade cuja principal característica é o benefício do outro, o injustiçado. Assim, universalidade, rigor e transparência são imperativos categóricos para a boa administração da justiça.
É legítima a luta por uma remuneração digna para os juízes. Incompreensível é o labirinto criado para se chegar a ela, manipulando princípios da soberania e independência entre os poderes. Ou espremer, por complacência, todo um poder até a desmoralização, só para esconder a má conduta e a inexplicável riqueza de alguns.
Sultanatos institucionais nascem de más rotinas. Produzem autoridades isoladas da vida e do sofrimento das pessoas comuns e enfraquecidas diante de seus críticos. O juiz entesourado por transferência injusta de renda não compartilha do destino dos que prejudica. Mas, ao causar dor aos outros, nunca passa despercebido.
Paulo Delgado é sociólogo, foi deputado federal.