MEU DEUS! A QUEM ME QUEIXO?

MEU DEUS! A QUEM ME QUEIXO?

O Globo – 2 de Março de 2015.

Ninguém pode deixar passar batido vendo a imprevisibilidade dos juízes impregnar tudo. E há os procuradores e seu arsenal de direitos subjetivos. Os humoristas até podem se livrar dos processos desde que expliquem direitinho de quê e de quem estão rindo. Três consensos começam a aparecer: não temos hierarquias espirituais; a autoridade é um artista constantemente atuando; não haverá outra perspectiva para nossa história. As pessoas imaculadas sempre foram anjos opressores. O velho mundo dos únicos está renascendo com seu insaciável prazer pela grandeza. Movida à água de bica, é ridículo achar que a sociedade mete medo no juiz. A menos que seja um juiz singular, honesto, discreto e sem mérito para ser promovido. E não são mais seus colegas, juízes e promotores, os mais tristes com essa distorção da identidade e a desescalada emocional de um poder.

Imagine o estrago que faz um juiz como esse do Rio de Janeiro no interior. O juiz de comarca, cano d’água, higiene da sociedade. Ninguém quer ficar lá abandonado. É preciso se tornar um mal juiz, multidão, adquirir motivos sólidos para odiar a justiça e começar a palpitar no paraíso do privilégio sem perder tempo com o ambiente à sua volta. Bom é ser parte entre o caso e o réu. Ser “o” juiz do processo, não “a” justiça da sociedade. A honestidade entre juízes estará severamente comprometida se a sociedade continuar sem ideia de qual é o senso de missão e orgulho que enche a vida de um juiz. Claro, há honestos e dedicados cujas convicções diminuem a esfera da justiça que praticam. E há também um segredo estranho: juízes justos que nem sempre são predominantemente bons. Avança em cadência rítmica a corporação oficial que se protege e toda manhã acorda se vendo no mesmo lugar, diante de mais juiz e, menos justiça.

É irresistível o diagnóstico freudiano aplicado às autoridades e a influência química, biológica, fisiológica, psicológica das suas decisões. O juiz federal criminal não conseguiu esconder sua motivação subjetiva e a sensação vaga de oportunidade que brota do arbítrio. Mas se fosse dinheiro que estivesse sob sua guarda, e não carro ou piano ? Engraçado as coisas se deteriorarem mais quando diminui a privação. O fardo de tornar intolerável a impunidade do juiz, essencial para que a sociedade se torne democrática, infelizmente não virá da própria justiça ocupada com palácio, repartição, tribunal, vara. O poder parece não saber mais a quem se dirige nadando na tolerância repressiva que estimula na sociedade. Nenhum juiz hoje é importante o suficiente se não for capaz de formar um cartel de influência que intimide os deuses que nos abandonaram. E o Judiciário, o Ministério Público são cada vez mais uma família parecida com o mundo da política no mundo do juiz, pai do juiz, filho do juiz, mulher do juiz, concurso, adicional, auxílio moradia, férias proporcionais, atrasados acumulados, tribunais, drible em tetos salariais, auxílio celular, auxílio motorista, e a lista tríplice que tanto interessa ao poder para ajudar a tirar de vez a venda dos olhos da justiça.

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PAULO DELGADO é sociólogo.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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