Música na Prisão
O Globo – 5 de março de 2012
O que a presidente fez até agora que mereça uma popularidade tão grande? Perguntou a professora da Universidade de Harvard dias atrás, quando lá estive. Respondi: nada que o povo brasileiro não possa fazer por si só. Num mundo masculino acostumado a grandes peripécias políticas para explicar a rotina democrática, pareceu-me a resposta mais adequada e menos acadêmica na ocasião. Aos poucos, a desembaraçada simpatia que demonstrava pela presidente e pelo Brasil foi se revelando. Fui caprichando mais na argumentação e em pouco tempo percebi como são limitados os esquemas explicativos das ciências sociais, sua busca por doutrinas e teorias, diante do rio raso das notícias políticas produzidas por nosso país.
O Brasil escreve um romance novo, muito pouco ao gosto compreensível da política moderna, onde o governante considera uma perda ideológica não poder afirmar sua posição todos os dias. Um inédito governo discreto, suficiente, que não cultiva a imagem de pessoa modesta, corajosa, prática, intelectual ou popular como é de nossa tradição. Nossa realidade continua mais gelatinosa do que efetiva, mas aumentou a compreensão que nem tudo é culpa do governo. Se as colheitas apodrecem, as fábricas não distribuem seus produtos, os carros e aviões andam devagar, o Parlamento se lambuza, o Judiciário se enrola, ministros se demitem, qual parte do Estado deve ser chamada para socorrê-los ou para fazer as coisas em seu lugar? Claro que cientistas políticos acabam dizendo que tudo anda possível porque vivemos numa época de cidadãos inertes. Mas é certo também que este fenômeno mundial tem beneficiado mais a estúpida economia do que o cidadão estúpido que acredita na boa política.
O prestígio da nossa presidente é correspondente ao do país no exterior e só pode ser danificado pela associação de seu governo com as ameaças a esta liderança internacional. Que pode vir da administração da política interna se esta virar as costas ao que ocorre no mundo. No mais, o estilo é uma natureza, e o da presidente é o que é, cuidadoso. É especial lembrar que na prisão, de sua vitrola, oferecia a quem sofria a voz suave de Paulinho da Viola. E para isso usava versos da música com que o compositor homenageava a professora de Recife que o chamava de filho nos tempos da insensatez.
Clássico, o bom governante sabe que muitas das arvoradas necessidades do Estado e dos indivíduos são quase inúteis. Revelam a dimensão dos desejos das pessoas e assim acabarão expostos. Excentricidades democráticas. Não é outra coisa a nomeação de um pescador de almas para o Ministério da Pesca. Mas não é desse modelo que sairá a força dos argumentos para enfrentar a hostilidade do governo norte-americano contra a Embraer, uma das nossas marcas mundiais.
Como também não virá das escaramuças políticas deste oceano de partidos, intenções e condutas a força para conter o sistema financeiro que nos trata como um cassino. O governo já percebeu que é preciso conter a fúria das despesas nas áreas onde reina a incompetência e o despreparo para a competição aberta. Não é tarefa fácil num mundo de juros zero desmontar a armadilha bancária que fez o Brasil atrativo para agiotas, que nos atacam vorazmente.
A economia psíquica do Brasil não está na pobreza que ainda nos ameaça, mas na riqueza da libido do nosso povo que não pode se realizar completamente. Por isso, é essencial a autoridade discreta e conectada com este tempo de falsidades contábeis. Pois se elas produziram esta crise mundial que nos beneficia é bom saber que a efusão das cerimônias, ou a abundância das possibilidades eventuais, nem sempre oferecem satisfação permanente.
O Brasil é um jogo em andamento. À noite, em Boston, não resisti à metáfora inevitável de um sul-americano. Afirmei os benefícios da continuidade sobre a ruptura institucional desde a redemocratização e ressaltei o fato que, desde que chegamos ao poder, a sociedade não é mais mobilizada para insultar o capitalismo, como vocês andam fazendo por aqui, diverti-me.
Ao pagarmos a conta do jantar, caí na real. Descobri que nos Estados Unidos a vida está mais barata do que aqui.
PAULO DELGADO é sociólogo e foi deputado federal.