O CÁRCERE DA MEMÓRIA
Um céu sombrio cobre o pais. A maioria das pessoas trabalha numa coisa que não gosta, luta a vida toda por nada, vive em conflito porque ama. O Brasil não funciona na forma em que foi concebido. A elite do Estado não quer se integrar à vida normal da sociedade. Continua forçando o governo a se endividar e pagar juro a milionário. Seu procedimento é regular, pensado, alegre. As instituições não conhecem a tristeza. Não têm interesse em estimular a normalidade, pacificar o território. São nobres humilhando plebeus.
O Estado é carceral em sua lógica fechada. O juiz precisa do criminoso, o promotor do crime, a polícia do bandido, o Supremo da inconstitucionalidade, a política da mentira, a receita da fraude. A riqueza é agiota do governo; o câmbio ri da afinidade da ideologia com a moeda. O juro sempre soube que não haveria uma City em Salvador como o chanceler sonhou para a Odebrecht.
Não é o povo, o trabalhador ou o empresário. Nem mesmo os ventos vindos do estrangeiro. É a elite, dos três poderes, no município, no estado e na união que semeia o sobressalto. Nada é o suficiente para seus membros. A despesa de esbanjador demora para causar repulsa. Muito poucos percebem que grandes talentos não brotam do chão. Quantos aceitam a ideia de que o dinheiro não pode dominar o mundo moral do homem público ?
Falta às autoridades um Konversationslexikon, o dicionário alemão destinado a fornecer às pessoas conhecimentos mínimos para manter algum diálogo sem precisar manipular, mentir ou agredir. Já é hora de o Brasil parar de admirar quem faz uso político de dados econômicos incorretos, estatísticas insuficientes, ou se vale de crises para fortalecer corporações.
No canto da cela o encarcerado e seu advogado não se entendiam.
– Todas as vezes que alguém se aproximou dele como amigo ele aproveitou para se afastar do dever de autoridade;
– Mas como condenar quem relaxa de seus cuidados para servir a alguém que comparte com ele seus assuntos?
– Em assuntos de governo nenhuma regalia ou servidão pode haver em tal afeto que a tantos inebria. Só a desmedida ambição tira do governante a meditação e o recolhimento. E faz seus prazeres eclipsar qualquer senso de limite e de justiça;
– Ora, se nem a ajuda de Deus o socorreu, de que índole são os amigos do poder? Você parece com ele indisposto, o que enfraquece muito seus conselhos;
– Não sou inimigo dele. Sou inimigo dos seus erros, todos desnecessários. Tudo lhe chegou de tal maneira que ele dispensou o futuro de sua preocupação.
– Ele sempre foi ingênuo na ambição. Não compreende que quem se aproxima do poder rouba um pouco de poder. Nem se dá conta de que é do poderoso parte do interesse de quem o visita interesseiramente;
– Está aí sua defesa! O crime não se coaduna com os deveres de um governante;
– Ele não acha que praticou crime. É ambiguidade, da política a maior das salvaguardas;
– A implacável lei da dupla face: você acaba sendo o que parece;
– Não é melhor ser escrupuloso, dormir tranquilo?
– Mas acordar fora da política? Para quê ? O calor do golpe na honra só é imperdoável no fracasso.
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Paulo Delgado é sociólogo.