O Estado contra a Sociedade
O Globo – 7 de Março de 2016
Uma das hipóteses para o trauma causado, em setores da magistratura trabalhista, diante das sensatas opiniões do atual presidente do TST sobre o papel da instituição que preside é o fenômeno da adaptação ao estado das coisas. A outra pode ser encontrada na arqueologia da linguagem de comando-obediência que funda o poder político. No primeiro caso, encontramos a dificuldade de o meio ambiente profissional sacudir a poeira e mover-se para a desadaptação, única forma de fazer progredir as relações sociais. No segundo, a sensação de desamparo produzido nos profissionais da área, diante da identificação maciça e estática com a autoridade punitiva-protetora. Nos dois casos, certamente o mesmo espanto que o trabalhador brasileiro sentirá quando, um dia, podendo negociar livremente seus direitos, perceber que não é a indenização que o faz ganhar mais.
O poder político é uma necessidade social e é melhor que seja organizado em torno do Estado. Mas, não sendo formado por laços de sangue como na Realeza ele é uma consequência da evolução da sociedade regulada. E uma das suas bases é justamente a evolução dos direitos sociais, econômicos, políticos, culturais e da autonomia do cidadão. Não existe progresso sem progresso nos costumes. Por isso, a boa autoridade, sabe que sua propriedade mais notável é a ponderação e o descortino e não a obsessão em arbitrar. Na área trabalhista, a mais social de todas, o bom juiz é o juiz desnecessário.
Os rumos do Direito do Trabalho deveriam apontar para o aumento crescente da liberdade de negociação. Porque a presença permanente da autoridade pública supondo que está ajudando o trabalhador, reforça nele a ideia de que ser explorado é o seu destino. Como se passasse a vida toda enchendo de água o vaso bom do patrão, enquanto o seu é um vaso furado. É certo que são elevadas motivações que provocam tal polêmica, mas a linguagem de uma autoridade que não admite perguntas diferentes daquelas as quais se acostumou se baseia na ideia do poder como uma negatividade.
Outro lance no jogo de ambivalência e paradoxo que nos domina é o projeto de lei que a Presidente da República enviou ao Congresso. Ela quer, para valorizar a advocacia pública, autorizar e garantir ao advogado público federal o direito de atuar na advocacia particular de maneira concomitante com o exercício do cargo público. E sem redução de subsídios. Ou seja, vai nascer o advogado – privado – da união. De manhã defende o Estado, de tarde o ataca. Há muito a aprender sobre a natureza e a origem das leis. Mas a desidealização do Estado contida nessa iniciativa poderia ser uma razão para apoiá-la. Mas não. Sua dimensão sombria revela a seriedade unilateral do mundo oficial. A mesma que tolera a transgressão de policiais, consequência dos turnos incompreensíveis a que são obrigados a vestir a farda do Estado. Para evitar o ócio da longa folga, sentem-se livres para servir a quem quer que precise de proteção contra a ineficiência do Estado ou esteja disposto a cometer delito contra a sociedade.
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PAULO DELGADO é sociólogo