Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 9 de Fevereiro de 2014.
A Índia completou sessenta e cinco anos de República no final do mês passado com uma caprichada parada militar em Nova Delhi. Na cerimônia, o primeiro-ministro prestes a se aposentar, Manmohan Singh, recebeu com honras seu equivalente japonês, Shinzo Abe, em atitude relevante para o posicionamento das peças no xadrez geopolítico da Ásia. Mas por mais que as tensões regionais estejam sempre no topo da pauta no turbulento oriente, a grande questão indiana na atualidade é sua eleição nacional. Reviravolta significativa é esperada, como se espera qualquer coisa vinda da Índia.
A república democrática com sufrágio universal estabelecida poucos anos após a conquista da independência, tornou a Índia a maior democracia do planeta. A mais conturbada também. A herança deixada pela colonização britânica, o “fardo do homem branco” cantado como face positiva do imperialimo no poema do anglo-indiano Rudyard Kipling, primeiro Nobel de língua inglesa, perdura todas essas décadas causando espanto e admiração. Pesado fardo de divisão e coalizão, indolência e loucura; as selvagens guerras de paz são o paradoxo da democracia deixada ali pelo espalhafatoso império de reis.
Neste ano, as pesquisas mostram que o principal partido de oposição, o BJP (Partido do Povo Indiano), é favorito para receber a maioria dos votos na eleição em maio. Se isso se confirmar, o partido já avisou que o primeiro-ministro será Narendra Modi, atualmente Ministro-Chefe do Estado Gujarate e homem sobre o qual pesa a culpa por negligência frente aos milhares de assassinatos por linchamento étnico-religioso. Do balaio indiano também aparece forte um novíssimo partido franco-atirador (o AAP – Partido do Homem Comum), identificado com as massas urbanas e jovens, nascido como resposta à crescente impaciência com a corrupção, e antenado ao movimento global de insatisfação e levantes. Mas o jogo, que ainda conta com o ruído de grandes nanicos regionais, ficará mesmo entre os dois gigantes mais institucionalizados, o BJP e o Partido do Congresso –centenária agremiação dominada, desde a independência, pela família Nehru-Gandhi, que encabeça o governo atual.
Modi é uma liderança peculiar. O BJP nunca foi organizado em torno de uma grande estrela. A própria doutrina do partido, oriunda do alçapão de movimentos nacionalistas hindus conhecido como Sangh Parivar, prevê uma não individualização da liderança. À frente de Gujarate há 12 anos, Modi mudou isso. Membro da poderosa RashtriyaSwayamsevakSangh (Organização Patriótica Nacional – bastião do conservadorismo hindu e fonte principal do Sangh Parivar, por onde passou, aliás, o assassino de Gandhi), Modi elevou sua cabeça acima do nacionalismo hindu e do BJP.
O estilo de Modi, até pouco tempo atrás causava irritação,mas acabou sendo beneficiário da percepção geral de que ele levaria o BJP de volta ao governo central. Consolidou seu domínio com a fama de combater a corrupção em Gujarate e chega otimista a uma eleição em que o Partido do Congresso entra cambaleante, dado o titubear de Sonia e Rahul Gandhi, mãe e filho, seus líderes atuais.
Gujarate é um estado associado ao povo e à língua Gujarati. Pedaço da Índia conhecido nos principais centros do mundo como celeiro de cientistas e pessoas brilhantes – o próprio Gandhi era um Gujarati, assim como seu companheiro de rebelião pacifista, Sardar Patel –, o estado também tem sido a principal referência de sucesso econômico no país. A atuação pró-negócios de Modi tornou-o o queridinho do grande capital. O sucesso em Gujarate contrasta com o fato de que o país como um todo não vai lá obtendo melhoras expressivas. E no lugar onde as chagas do sistema de castas ainda se impõem, a eleição é momento único de cidadania, notoriamente para os pobres.
Na Índia, o voto não é obrigatório. Mas os pobres preferem votar a ficar em casa. Não é em troca de favor, nem por patriotismo, é para que o Estado não esqueça que eles existem. O dia da eleição é o momento em que, um Estado normalmente alheio, quando não violento com os miseráveis, os trata com dignidade. É da ida dos pobres ao escrutínio que depende a própria legitimidade da República. A lógica do destituído segue a seguinte linha: se os pobres, que são maioria, não votarem, ninguém se lembrará deles.
Se a decepção dos pobres ajuda Modi,ainda mais lucrativas são as preocupações da classe média. Ele tornou Gujarate um Estado dinâmico e com menos corrupção. Em um momento em que a percepção de corrupção está alta no país e tem enfurecido a população, ter alguém que é bom administrador, mesmo sendo conivente com a violência, é um caminho palpável para muitos. No país com mais de um bilhão de habitantes, roubar tira mais votos do que matar.
PAULO DELGADO é sociólogo.
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