O Livro Branco
Terminou em Manaus o terceiro seminário sobre o Livro Branco de Defesa, que discutiu a necessidade de maior integração da Amazônia na busca de mais proteção à região. Há ali uma combinação explosiva de escudo que nos protege e alvo que nos ameaça: extensa fronteira externa em mais da metade do território brasileiro. Diante de tanta riqueza, violência, cobiça e problemas conhecidos e agravados a cada dia, é difícil dizer quem nos causa mais preocupação: nossos oito salientes vizinhos sul-americanos ou nossos nove negligentes estados amazônicos.
Pois nem todas as ameaças sofridas por um país podem ser combatidas com equipamentos ou meios militares. O desafio é ter a capacidade de articular sempre as razões econômicas, ambientais e sociais e assim combinar a virtuosa ocupação do território com o Estado e Sociedade na responsabilidade de proteger.
Com efeito a integração física e econômica possibilita a livre circulação de pessoas, informações e mercadorias, e tem os mesmos fundamentos dissuasivos e pacifistas de nossa política de Defesa. Também permite modernizar o arcabouço jurídico partilhado entre Nações vizinhas, articulando comércio e paz, dois dos maiores bens públicos internacionais.
É a integração estrutural – estradas, ferrovias, hidrovias – o melhor caminho para avançar nossos laços políticos e sociais. Foram redes de conexões físicas que serviam a propósitos econômicos que precederam a integração política na Europa.
Na América do Sul ainda há muito o que se avançar. Os projetos atuais que facilitam a conexão dos países são estratégicos para a promoção do desenvolvimento regional, especialmente diante de todo o potencial da Amazônia. Pois é exatamente pela complexidade de empreendimentos na região e suas naturais restrições ambientais – em vista da alta sensibilidade do ecossistema local e da necessidade de se poupar o bioma amazônico – que cabe ao Estado liderar o processo de ocupação civilizatória e sustentável que iniba e evite a exploração predatória. Mudar a matriz energética e de transporte radicalmente e harmonizá-la aos vetores limpos de desenvolvimento oferecidos pela cidadania das águas combinada com tecnologia. Ousadia e criatividade de um Estado exemplar, guardião da sustentabilidade de seus próprios projetos e não somente fiscal da sustentabilidade dos outros.
Nossa maior ameaça na região é não ocupá-la, ou ocupá-la de maneira errada gerando desconforto, sofrimento e desproteção a sua população. É incompreensível faltar água potável e saneamento básico para quem vive no meio da água. Também é inaceitável que os currículos das Universidades sejam indiferentes ao ecossistema local na formação de todas as especialidades e conteúdos oferecidos. Da medicina tropical ao direito ambiental; das engenharias à pedagogia; da economia e farmácia à antropologia. Planejar integralmente o desenvolvimento regional e intervir, informada e democraticamente, na ocupação daquela vastidão que nossa soberania nos concede e temos obrigação de preservar.
Nada disso viola a Convenção dos “Deveres dos Estados e Direitos Protegidos” previsto no Pacto de San José. Ainda que o Brasil aceite se submeter à jurisdição externa é sempre necessário levar em conta que petições de comunidades, grupos, instituições ou pessoas contrárias à intervenção do Estado em seu território, sozinho ou em parcerias, só podem ser aceitas quando hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios do direito internacional geralmente reconhecidos.
Construir os eixos físicos em torno de curvas, cordilheiras, abismos, rios, calor e frio, erros e rumos que deverão sempre ser corrigidos, para não deter nosso sonho de integração interoceânico e continental que nos leva de Roraima a Georgetown; de Manaus a Caracas; de Assis Brasil a San Juan; da bacia amazônica do Atlântico ao litoral amazônico do Pacífico. Passear, conviver, trabalhar, enriquecer e proteger.
Paulo Delgado é Sociólogo.