Os Miseráveis
O Globo – 4 de junho de 2012
O mundo ficará mais maduro para a queda se insistir na política do apaziguamento que é socorrer os criadores da financeirização da economia. Os bancos inventaram as próprias mentiras nas quais passaram a acreditar. E estão dispersando a legitimidade da autoridade mundial de tal maneira, que é impossível reconhecê-la num país, instituição ou indivíduos.
A Europa tornou normal a prosperidade quando soube como ninguém ancorar o capitalismo no Estado de Bem Estar Social. E não foi só. Tornou secundários conflitos nacionalistas, abriu fronteiras, acolheu estrangeiros, unificou trocas econômicas em torno de uma moeda única. Depois de ver morrer em seus países mais de 30 milhões de pessoas na 2ª Guerra Mundial, decidiu e construiu, em menos de 40 anos, um continente conciliatório. Nada parecido com a onda de intransigência que a crise econômica atual derrama sobre seus governantes.
Para pessimistas das agencias de risco, analistas burocráticos de institutos e colunistas frequentes da imprensa internacional o aparente colapso da zona do euro vai levar à recessão global. E a confusão das análises já é tão grave quanto a crise. Com destaque para aquelas que desvalorizam o esforço heroico, de diversos países do mundo, para construir caminhos de estabilidade, distribuição de renda e mobilidade social.
O mais desalentador é ver o quadro atual se prolongar e piorar, não porque a crise econômica é grave, mas porque a unidade política é nula. A crise financeira vai fazendo aniversários como crise econômica por causa da profunda crise político-existencial pela qual passa o ocidente. Nas mãos de líderes tacanhos o caso europeu é singular e curioso.
O grande imbróglio mais uma vez não é econômico. É político. Pois mesmo na ausência de consenso, o continente contou, nas décadas passadas, com líderes determinados a promover a causa da integração. Há tempos ela sonha com o humanismo de Victor Hugo, adversário ferrenho dos caprichos do poder que produzem as misérias sociais. Será que o projeto não sobrevive sem o pragmatismo de quem já viveu tempos realmente ruins como François Mitterrand e Helmut Kohl ? A geração que está aí não acredita que possa haver algo pior do que uma dificuldade de crédito. Ela não entende o ganho que é ser melhor que ser mesquinho. De ser múltipla contra ser homogênea. De ser uma Europa que decide de forma coletiva melhorar a vida de todos, contra uma tragada em competições, cheia de ressentimentos étnicos e esticando a corda para além do que a boa-vizinhança aguenta.
Tudo fica mais difícil sem o surgimento de uma nova inteligência, menos tecnocrática, disposta a confiar mais no ser humano. Essa semana a chanceler Angela Merkel mostrou, em uma escola primária sua insegurança sobre a geografia do seu país. Não soube apontar onde fica Berlim no mapa do mundo. Sem problema! O grave é que nos últimos anos ela demonstra, também, não saber a posição da Alemanha nos acertos históricos que formaram a União Europeia e culminaram com a adoção da moeda única. A Alemanha só ganhou com o Euro. Mas agora, no momento de pagar um pouco, se nega a fazê-lo escondida num legalismo sem memória.
Uma das coisas que a adoção da moeda única causou foi a concentração da produção industrial na Alemanha. Hoje mais de 40% das suas exportações direcionam-se para países da zona do euro. Claro que desmantelar a região é péssimo negócio. Mesmo assim o governo alemão calcula que sócios menores, como a Grécia, não valem muito.
Se a Alemanha esqueceu a ajuda que recebeu para sua reconstrução deveria, pelo menos, ter ideia do que o mundo deve aos gregos, e menos certeza do que os gregos devem aos bancos.
Com uma mitologia repleta de heróis, monstros e deuses, e sendo Atenas o berço da democracia, os gregos terão que se esforçar ao extremo para compreender a lenda dessa recuperação econômica que se obrigaram a cumprir. Mas como são apaixonados por teatro, e sempre apresentaram ao ar livre suas peças, serão obrigados a ver a realidade dos dramas e tragédias encenados como sátira e comédia, mais adequados ao papel de nação coadjuvante que a Europa lhes reservou.
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PAULO DELGADO é sociólogo. Foi deputado federal.