Pedra noventa
O GLOBO. Tema em discussão: Estilo PT. Quinta-feira, 3 de abril de 2003. Outra Opnião.
O governo Lula vai muito bem e embriaga de soberba os que não conseguem compreendêlo. Até agora, as críticas de ocasião são como prescrições farmacêuticas, destacando-se as oriundas de um certo despaisamento dos ungidos em cultura estrangeira: de um lado o moralismo udenista de classe, de outro a esquerdice de boxeurs sem classe. Em política, o que não é óbvio é bobagem, e a apropriação da legitimidade do poder pelo peso histórico das práticas tradicionais resiste de múltiplas formas, e em todas as áreas, à gestão democrática dos assuntos públicos. O povo nos deu a maior bancada mas, entusiasta da coalizão, não nos deu maioria no Parlamento. De que adiantam boas idéias sem voto para aprová-las? A articulação política congressual, penosa mas eficiente em sua construção, protege o presidencialismo da instabilidade política, usada no Brasil para, de tempos em tempos, romper o equilíbrio do governo, facilitando a instrumentalização do Estado por grupos restritos.
A tagarelice parlamentar é felizmente ofuscada por uma irradiação da personalidade presidencial que se aproxima do melhor conceito, tão caro ao nosso país, de que vida pública se faz com discernimento, proximidade, felicidade e alegria, e que o presidente brasileiro não tem o direito de viver as decepções da elite. Política é arte do indicado, e a dívida dos poderosos com a fome de grande parte do país, a ser quitada em união nacional, recaptura a sensação essencial de nação e amplia áreas de igualdade entre nós, desprimitivizando um pouco mais o país.
A política externa – a única área com continuidade profissional de longa duração do país – acentua e engrandece com descortino a melhor tradição de Rio Branco, de uma diplomacia imparcial, sem neutralidade, onde o horizonte diplomático não esteja circunscrito ou condicionado ao temor reverencial à nação hegemônica.
Nenhuma sociedade se coloca tarefas para as quais não está preparada. É isto que fortalece nossa convicção de que não temos compromisso com o passado, mas com o futuro que amplie o conceito de estabilidade social, e que o conflito de direitos entre o passado e o futuro se resolverá com mais democracia, debates e mais reformas, que temos quatro anos para fazer. Nesses noventa dias, o governo Lula consagra a excelência da homeopatia para problemas crônicos, e faz o Brasil popular gostar um pouco mais de sua história. É pedra noventa.
PAULO DELGADO é deputado federal pelo PT-MG.