Um Período “NICE”
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 19 de agosto de 2012.
Em 2003, Mervyn King assumiu a presidência do Banco da Inglaterra, o Banco Central do país. No discurso de posse, ao elogiar o momento vivido disse que os dez anos anteriores poderiam ser considerados NICE. Mervyn King colocou em uma expressão sonora as características principais que sintetizavam o período. Para formar a palavra “nice” ,do inglês, que pode significar “legal”, “bacana”, ou “prazeroso”, usou as letras iniciais de “Non-Inflationary Consistently Expansionary”. Traduzida, a frase significaria algo como uma década “não-inflacionária consistentemente em expansão”. Em junho de 2008, quando ficou clara a quebradeira, King fez um discurso no qual ele alertava que a década NICE havia chegado ao fim. E poderia ter sugerido a lição de Albert Einstein, quando este dizia que “os problemas existentes não podem ser solucionados pelo mesmo modelo mental que os criou”.
Sem dúvida o período anterior à crise de 2008 foi de consistente avanço econômico não-inflacionário, sugerindo um crescimento real robusto e sem maquinações. Mas o que veio à tona depois é que o modelo se assentava em uma engenharia financeira megalomaníaca e falha. Quando os pilares insustentáveis do funcionamento desse cassino foram desnudados, o prédio, que se mantinha em pé pela força da crença, da confiança e da desinformação, veio abaixo. Dos escombros sobrou o aumento da concentração de renda, a desvalorização do trabalho produtivo, a contaminação da economia mundial. No fim das contas, o período teve muito de enrolação, sem sabedoria para o futuro ou metas reguladoras para que a ambição de usufruir da riqueza não se opusesse ao conhecimento para produzi-la.
O mundo entrou em um período de insistente contração da renda e escalada do desemprego. Visivelmente, os governos perderam o controle dos orçamentos nacionais. A consequente diminuição do crescimento nos países mais pobres mostra, hoje, que não é só a Europa e os EUA que foram maltratados.
O modelo econômico precisa ser alterado para deter o lobby da “indústria” financeira que trabalha muito pouco a serviço da sociedade. Só que a mudança desse modelo é difícil, porque os grupos ligados ao sistema especulativo aumentaram absurdamente seu cacife político no período NICE. Nos EUA, é o que o insuspeito economista indiano Jagdish Bhagwati, professor da Universidade de Columbia e entusiasmado com a globalização, chama de “complexo Wall-Street-Tesouro Nacional”. Está difícil, mesmo para os liberais, ver virtudes na desregulamentação total dos mercados, e muitos perderam a simpatia por esse animal de estimação indomesticável que são os bancos.
Agora, começa a crescer a consciência do risco político que a crise contém ao alimentar a popularidade eleitoral do extremismo. É natural que toda crise gere propensão a boatos, mas resultados eleitorais desfavoráveis deveriam provocar reações imediatas nos políticos. Não é o que se vê em todo lugar. A eleição norte-americana é um acabado exemplo de como a política perdeu sua força para a realidade. Os dois candidatos parecem mais se esconder na não-opinião do que mostrar certeza sobre o que seus eleitores podem esperar em relação à crise.
Por aqui, a América Latina precisa voltar-se para o investimento e a criatividade: vertente historicamente subaproveitada na região. Além de enorme dificuldade para poupar e do rechaço a parecerias de investimento público-privadas, há o sufocamento, num ambiente hostil e anti-intelectual, do bom preceito de reconhecer e copiar o que é bom nos outros, primeiro passo para que as invenções sejam possíveis.
A sorte é que nos últimos anos a poupança mundo afora está desequilibradamente elevada e a procura de países receptivos. O desafio do nosso continente é não ficar refém desse modelo em crise, criando um ambiente seguro e amigável de atração de investimento produtivo. A inteligência regional precisa desenvolver o hábito de ter menos esperança no futuro e buscar agir um pouco mais no presente.
Parece difícil aos governos escolher a melhor alternativa de ação para seus países. De um lado, por não terem controle sobre todos os fatos econômicos, de outro, pelo confronto com as escolhas individuais dos cidadãos, crescentes e restritas aos seus próprios objetivos. Um equilíbrio simultâneo e combinado, entre ação governamental e escolha individual, é necessário para construir um novo modelo de crescimento.
Por enquanto, a incerteza em relação ao bem-estar de todos fez prevalecer a força de objetivos díspares e conflitantes – o governo movido pela obrigação de agir, a sociedade querendo mais permissão para pedir.
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PAULO DELGADO é sociólogo. Foi deputado federal.