A capital ferida

O Globo – 14/03/2010

A cidade está ameaçada por uma predatória especulação imobiliária

Cuidado! Se você continuar andando nessa direção vai acabar chegando lá, diz a patética sabedoria. Lembro-me, ainda, da sentença de Primo Levi: “A ascensão dos privilegiados em todas as sociedades é um fenômeno angustiante e fatal…e o poder o tolera e encoraja.” Vivemos outros tempos, outros motivos, mas eles estão sempre aí…privilegiados – “só ausentes nas utopias”.

Brasília, por decisão errada da Constituinte, virou as costas ao país quando deixou de ser capital da União para ser capital do GDF (Governo do Distrito Federal). A forte pressão emocional sobre os constituintes mudou tudo. Pirraça de uma cidade sem passado que mudou de status político sem mudar de condição econômica. A mais nova unidade da federação renasceu sem o futuro original.

Assim se deu: por continuar a ser sustentada por recursos transferidos da União, mesmo deixando de ser município neutro, a capital percebeu que podia usufruir de sua autonomia em dissonância com os contribuintes e cidadãos de todo o país. Já planejada, construída e pronta foi capturada pela política e a ambição local, atraindo eleitores de todo o país e especuladores de todo o tipo para os favores e a farra com o dinheiro alheio distribuído no círculo do poder. Compreendeu rápido que era possível desfrutar indolentemente de toda a nação, sem nada lhe devolver.

Quando a norma constitutiva da política é desviante, um privilégio sem sentido, toda normalidade torna-se suspeita de desvio e contamina a sociedade.

O problema é que os crimes e os erros da política ainda são “odiados respeitavelmente”. Graças ao charme da virtude fluída que a propaganda colocou à disposição dos políticos, um escândalo supera o outro – todos nutridos pela passagem do tempo e pela omissão dos diversos judiciários do país. Contribui, também, para tudo “ficar como está”, a “decência oportunista” própria da rixa política que permite ao rival odiar impunemente e publicamente o adversário, fazendo-se de decente, até ser pilhado no mesmo erro.

Não fosse a premonitória decisão da Unesco de tombar o Plano piloto – mesmo que tenha esquecido de suas árvores, a mais vital invenção de todo o projeto – a predatória especulação imobiliária e a manipulação eleitoral mais insana do país já teriam destruído toda a capital, assim como já o fizeram com sua periferia e entorno. Também na mira de fogo dos novos tempos, agora desnudados, estaria a sensibilidade do governador Cristovam que confrontou o nosso deslumbrado país do automóvel ao ensinar ao brasiliense que p pedestre é mais importante que o carro – assim se atravessa a rua na capital: a mais moderna e relevante decisão política desde a fundação.

A forma da administração política de Brasília não encontra precedente nem alicerce no modelo de gestão das capitais das democracias mais modernas e eficientes do mundo. Muito menos na tradição política brasileira desde o Império e toda a República até 1988. Estragar o conceito e a integridade de Brasília não foi culpa da ditadura…

Foi o eleitoralismo total, construído sobre o discurso emocionado da nostalgia do voto após o período militar, somado ao vácuo da liderança política austera da Nova República, que fez o constituinte tirar da capital, transferida do Rio de Janeiro, o privilégio de ter uma cidadania qualificada em nome de toda a nação – aceitar trocar parte da cidadania eleitoral pelo privilégio de morar na cidade-sede dos poderes da União.

Um município neutro e seu distrito federal sustentado por todo o país: tal engenharia foi além do bom senso. Dissolveu no Senado a Comissão do Distrito Federal e a substituiu pela Câmara de deputados distritais, pródiga, pela total ausência de função, em futilidades transgressoras. Acabou com a ideia mais razoável e adequada de prefeito da capital e a substituiu pela desproporcional função de governador. Superlotou de representantes de seus próprios habitantes a cidade administrativa, sufocando sua vocação original.

Quem sabe agora, diante do egoísmo dos desejos políticos sorvidos até a última gota, e aos cinqüenta anos, possa a capital perceber que a esperança de mais liberdade e direitos – anunciados pela Constituição de 1988 – contraria sua vocação real e tornou-se ameaça ao seu futuro de capital de todos os brasileiros e à qualidade de vida dos brasilienses.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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