A falsidade de um êxito

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O Globo – 2 de outubro de 2017.

O Brasil quer se salvar sem raciocinar, como aglomerado de náufragos. Uma sequência interminável de festas deu errado e regrediu a moralidade da nação. A honra do líder se concentrou na luxúria certo de que causa justa limpa dinheiro sujo. A polêmica não dissipa porque ainda é observada do lugar de onde vem a ilusão.

O povo sucumbiu à irrealidade, fustigado por líderes determinados a varrer do chão a racionalidade das realizações e a liberdade de escolha. Outros poderes embarcaram na onda dos arranjos e a insolência de mando se espalhou. Explorar o sentimento popular, através da serpente sagrada da política, tornou-se insuficiente. Era preciso ir além, prender o cidadão no contorno moral do período. Introduzir uma guerra civil no coração das pessoas. Insinuar que idolatria é bom. E liberar cada um para fazer o que bem entender.

O motor de tudo é o falso êxito do passado próximo. E o desejo de ser gado. Percebido o desatino houve uma fuga em direção a dogmas, fé cega em tudo o que é falado, lido, escutado. O mundo medieval da escritura, superstição, domina. Espíritos insalubres vagueiam pelo ar como amuletos, cão sem cabeça, perigos invisíveis. Por conta de litígios viraram autoridades sem mérito. Fizeram da Constituição uma superstição jurídica. Inaptos para a moralidade coletiva se autorizaram receber acima do que manda a lei. Está profunda a cisão da consciência.

Fora de moda vamos cuspindo na credencial civilizatória. Renda, indenização, dinheiro não são os principais sinais do êxito humano. A autoridade que ordena bondade, tempero pessoal imposto ao paladar do negligenciado, vê o Estado como sua cozinha e a Sociedade depósito de restos.

Isolada na mente de dois autoritários, a dinastia popular – um rei, uma regicida – improvisou a honra e impôs uma visão de justiça. A farsa fingiu amparar o pobre sem soerguer a economia. Ficaram visíveis demais nos que nomearam, entupiram o país dos que falam pelo cotovelo.    O Ministério Público inventa crime, como o gato toma leite. Faça crime, contrate procurador!, deu no que deu.

O Supremo, agravado pelo problema relacional entre seus membros reduziu a lei a uma série de astúcias. Confunde o justo com o legal, inadequados moralistas cavam a alma da nação. A inocência que é seguir a lei segue ultrajada pela consciência de se achar melhor do que ela. Tudo está prefixado: pontificar, ou saldar dívida, predispõe um juiz a falsidade.

Qual o significado de vivermos um tempo tão fechado à razão, de tanta inconsciência? Se o Brasil quiser interromper essa viagem segura que faz em direção ao caos precisa mirar o abismo e decidir não pular.

Olho no mentiroso que encarna a contradição e se irrita com aliado que aponta seu erro. Atenção ao “cheio do gesto e jeito do dever, no fundo só fazem é servir a si próprio”.  Corra da identidade fraturada do furioso e seus indícios. Não há emissário de anjo: o boato quer circular, não precisa “credibilidade” de pesquisa.

Perca tempo com os capazes de reflexão, alguma modéstia, ceticismo metódico e cujo corpo não esteja inteiramente dedicado a ser fotografado. Da dúvida surgirá a decisão. O verdadeiro êxito ainda não tem rosto.

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PAULO DELGADO é Sociólogo.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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