O Globo – 5 de dezembro de 2011.
O sofrimento virou doença. Qualquer mal-estar diante do mundo, um distúrbio. A ambição grandiosa da psiquiatria está cada vez mais parecida com o sem limite do mercado financeiro. Querem que todos vivam suas leis de 3 ferro, amedrontados e submissos. Nada melhor para a criação de crises do que um poder sem sociedade, com regras próprias, exercido sobre todas as pessoas, sem que elas tenham direito de reagir ou ficarem indiferentes. Basta dar o nome de diagnóstico para relacionar sintomas e definir como transtorno qualquer manifestação da personalidade.
Quando a prática da medicina, subjugada à indústria de medicamentos, se oferece como cárcere, ficamos diante de uma verdadeira bomba embrulhada como se fosse terapia. Pior quando uma especialidade médica transforma em missão sanitária esconder hábitos e tarefas de uma sociedade indiferente a vida dos outros e que só vê as pessoas de forma binária: com sucesso, ou fracassadas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) anda preocupada com a definição de doença mental que a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doença Mental — universalmente conhecido como DSM-V — anda preparando. A ser lançada em 2013, mas já objeto de tensa polêmica no meio psiquiátrico, especialmente, norte-americano, a nova edição da DSM, transforma o cérebro num disco rígido. Um computador sem alma, intoxicado, num mundo cada vez mais doente e que somente poderá ser salvo por remédios. A OMS alerta que não aceita a desenvoltura da classificação, porque não é doença o que não pode ser caracterizado patologicamente, tem etiologia desconhecida, não possui padrão uniforme, não pode ser confirmado.
Quem não viveu, alguma vez na vida, alguma destas graves “doenças” psiquiátricas: abuso ou abstinência de substâncias, ansiedade, autismo, déficit de atenção, transtorno bipolar, confusão, desatenção, tendência à psicose, transtorno de personalidade, comportamento antissocial, apego reativo, amnésia, esquizofrenia, distúrbios diversos, etc. São tantos os nomes das “doenças do nervo” que agora viraram sinónimos de remédios e comportamentos, que começa a ficar preocupante o convívio humano. A menos que a sociedade perceba a gravidade dessa verdadeira epidemia que é querer tratar pela psiquiatria as dificuldades e problemas que fazem parte da vida. Junte os ritmos cada vez mais velozes e insanos da vida diária a esta forte tradição que tem a medicina de “encaixar um sintoma”, prescrever um remédio e mandar para o hospital que vamos todos viver dopados. Qual ê a definição precisa de transtorno mental? Quem pagará pela tragédia que o diagnóstico errado causa na vida das pessoas?
Qualquer coisa malfeita afeta todos. Mas quando é feita na rua aos olhos de todos como se fosse uma acusação, seja pelos despossuídos que usam crack, seja pelas autoridades que usam o arbítrio para fazer a cidade limpa, há aí outra vertente impiedosa dessa epidemia da tutela. Aqui o erro vem na sua forma prática como serviço, depósito de exilados. No mesmo embrulho mistura arbítrio e falsa legalidade e dá o nome de tratamento para o que é abandono. Chama de falha moral a ousadia de esses jovens se desintegrarem nas ruas e praças. O usuário de crack compartilha a única localização no espaço urbano onde o efeito do que ele faz não é insignificante para os outros. Gerador de atenção e afeição momentânea não consegue transformar em sonhos o que está vivendo. Se o judiciário diz que é legal passeata para defender o que é considerado ilegal, de onde sai a ousadia da autoridade para recolher das ruas e retirar direitos de jovens pobres e abandonados? Onde pretende devolvê-los?
Dar o nome de terapia à indiferença social e ao fracasso da política pública — que não tem força para destinar recursos para serviços abertos 24h, descentralizados e multiprofissionais de acolhimento — só confirma a força que a indústria médica da tutela continua a ter sobre a população.
O que só aumenta a tragédia que é ver o sofrimento não gerar mais afeição.
Paulo Delgado é sociólogo. Foi deputado federal.
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