Evolução

Liberdades muitas vezes são suprimidas em nome da proteção ao indivíduo

Quem observa em perspectiva o andar da sociedade dificilmente nega que houve um crescimento da qualidade de vida nos quatro cantos do mundo. A afirmação dos valores humanistas segue se alastrando. E mesmo com reveses, o resultado até aqui é positivo. Todavia há, indubitavelmente, excrescências no modo como vem se dando o processo, todas sempre ligadas à recusa em aceitar o caráter universal da ponderação e da responsabilidade democrática – que se de um lado amarra paixões de outro solta a rédea da liberdade.

É, pois, paradoxalmente alentador para um período de crise que o mundo atual esteja numa maré de desenvolvimento e avanços sociais – atrelada em seu cerne às novas tecnologias, pesquisa científica, cidadania plena – que vem gerando melhorias substanciais na qualidade de vida das pessoas.

Diminuiu em centenas de milhões o número de seres humanos que vivem na miséria. Cresce a evidência de que o progresso consistente é maior nas nações onde o vírus do imediatismo não ataca seus líderes. Países serão alçados ao grau de potências econômicas graças a eficientes modelos de produção, parcerias, ambiente de inovação e estímulo a talentos, criatividade trabalhista, visão de um mundo sem fronteiras.

Por outro lado, a iminência real e não mais fantasiosa de grandes desastres, frutos do próprio progresso humano e não mais de forças incontroláveis, dá a dimensão exata de um tempo em que o poder sobre a vida está sob as mãos do homem responsável. Daí a urgência da pluralidade para que tal poder se dissipe democraticamente. Em termos mundiais, a discussão se dá no âmbito das interações entre países. Já dentro de cada país se discute como anda, ou como deveria andar, a interação e atualização de desejos entre as diferentes classes, grupos de opinião, investimentos, senso de justiça da lei, padrão educacional.

Nos Estados Unidos, por exemplo, onde a questão racial protagonizou emblemáticas manifestações por mudança, temos hoje um presidente negro. No Brasil, onde a questão também está presente, mas que certamente a chaga das distinções de tratamento e oportunidade entre as classes socioeconômicas é mais sensível, vivemos o sétimo ano de governo de um operário migrante nordestino. Sinais dos novos tempos alentadores de que as lutas humanistas e democráticas surtiram efeito. Evolução.

Logo, qual é o rumo adequado para potencializarmos o novo paradigma social do século XXI? Nos EUA, a Suprema Corte decidiu recentemente que estava errada a decisão de certa prefeitura – New Haven – de cancelar a promoção de bombeiros classificados em um exame, por não haver entre os aprovados nenhum negro. A Suprema Corte entendeu que já é hora de começar a refletir sobre a realidade de negros e brancos poderem estar em pé de igualdade para a prestação dos exames, promovendo os aprovados independentemente da cor da pele. Entre os que moveram a ação contra a atitude tendenciosa da prefeitura estava um latino, outra minoria “racial” daquele país. Sentenciou o Judiciário, mirando no futuro e influenciado pela evidência democrática maior: se o principal mandatário da nação é negro, como considerar hostil e vitimizante, direta ou indiretamente, o sistema meritocrático?

E no Brasil? Qual a razão para continuar tratando cidadãos como desprovidos de capacidade de decidir e competir por conta própria, sejam empregadores, empregados ou desempregados, pobres ou não. As liberdades individuais muitas vezes são suprimidas em nome da proteção ao indivíduo. Proteger e cercear são termos que apresentam interseção, limites, e dirigidos a cidadãos no pleno gozo de seus direitos políticos sugere que são irresponsáveis diante da responsabilidade social e de trabalho.

Nunca foi garantido ser responsável. É recomendável e necessário um mínimo de regras e condições providas pelo Estado, resultado da ação de contribuintes, para chegar a responsabilidade, não mais que isso. Porém, leis e atitudes centralizadoras, paternalistas e punitivas demais, quando são duradouras, revelam falhas nos seus mecanismos de transmissão e objetivos. E abrem espaço para o direito social virar favor político, debilitando o Estado e a sociedade frente ao seu dever e responsabilidade.

Vem dos antigos a melhor noção de cidadão: nosso dever é ficar de pé – não ser mantidos de pé.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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