Jardineiros e caçadores

Ninguém mais será poupado da náusea da política

Em política não há mais como reencenar nenhum dos dias da sua criação. Foram-se os tempos das obras no farto tempo das carreiras. Adeus vocações diante do realismo dos cargos e posições. No mercado aberto da habilidade, da reparação de qualquer erro pela publicidade e da indiferença popular foi-se o valor da coerência. Outrora representativa de classes e correntes de opinião, hoje a política é sua própria classe. A função do poder político, atuando como um sistema lacrado, transforma-se no seu oposto. Sustentando-se – esse poder – em dois princípios, cuja peculiar interpretação é de difícil compreensão civil: a lealdade como disposição para apoiar qualquer coisa que o poder requeira e a competência como noção que afirma que vergonhoso é perder.

A responsabilidade não é mais capaz de determinar a ação diante do mundo próprio da política, pois em sua polarização ritual uns vão sendo movidos pelos outros. O poder, assim, se constrói realisticamente como um narcótico, algo efusivo, mas entediante. Fastio de um tempo onde permissão para fazer não quer dizer obrigação de fazer.

Ninguém mais será poupado da náusea da política.

Tantos relatos, tantas perguntas, espantava-se o poeta épico da Baviera B. Brecht com o analfabeto político de sua época. Não se dirigia aos políticos, mas aos seus apoiadores, os eleitores, que convidava para uma nova política. Nem supunha estar diante de jogadores de dominó que não sabiam muito bem que figura sairia de suas peripécias. Queria atrair cidadãos para a labuta do dia a dia e lhes dizer que uma andorinha só não faz verão. De certa forma, consagrou a idéia de que a política é tudo, um poder absoluto, bem e mal, deixando sem graça quem gostaria de viver com menos política. Meio sem querer, atirou no que viu e acabou por reafirmar o que não viu ou compreendeu. O dramaturgo alimentou o monstro que pensava combater. Partidos, parlamentos, governos e líderes são cada vez mais organizações totais, regidos por suas próprias leis.

Os efeitos desestabilizadores de más condutas públicas são conhecidos em todas as sociedades. Mas que tipo de comportamento político seduz os cidadãos? A confiança no espírito dos caçadores, seu olhar faminto sempre a sair por aí transformando tudo em conquista e triunfo. Muitas vezes predadores, poluidores, imediatistas, com motivações egoístas e distopias. Ou a admiração pelo espírito dos jardineiros, construtores, de motivos altruístas, preservacionistas, com visão de longo prazo, plantações para outros usufruírem. Ainda que às vezes ingênuos motivados pela utopia.

Não é tão simples a escolha nem tão clara a paisagem dos dois personagens na vida da sociedade. Jardineiro ou caçador, idealista ou realista, o bom político não teme a criatividade civil e se espelha na responsabilidade e autonomia dos cidadãos independentes.

O desejo de servir, atuar, representar, fiscalizar, legislar, executar, fazer e revogar leis é tão meritório e suficiente que deveria ser a base da vocação pública. Tal vocação parte da observação dos anseios e das necessidades populares em consonância com as possibilidades do país. Observação que vem da vivência, das experiências cotidianas, da força do cidadão exemplar. É daí e não do claustro, que irrompe a vontade sadia de suscitar discussões que revejam paradigmas de modo a criar condições para que a sociedade e o país se direcionem para o desenvolvimento e a emancipação.

Todas as questões da vida nacional têm a sua devida importância, mas há aquelas que são centrais, de sabedoria e método, e das quais depende a profunda solução de todas as outras. Estruturais, estratégicas, motivadoras de valores coletivos não devem ficar num segundo plano imposto pela política que centra todo o seu interesse na sua própria atenção.

De Gaulle anteviu uma França revigorada como nação pelo predomínio dos valores culturais e industriais, de liberdade e autonomia que atravessariam gerações. Conferiu sua opinião com o escritor, filósofo e ministro André Malraux, que lhe disse: é o trato elevado e de longo prazo das grandes questões nacionais que livra a política da tentação do erro e do mergulho na mediocridade do seu dia a dia.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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