O sono da razão

“Diga-me o nome de um só animal jeitoso que eu não seja capaz de imitar! – Fanfarronou o macaco, dirigindo-se à raposa. A raposa, porém, limitou-se a responder: e tu, diga-me o nome de um só animal desprezível ao qual ocorra a bobagem de te imitar”. G. E. Lessing, pensador do iluminismo alemão, professa o mundo atual. No dissimulado jogo da política internacional, hegemonias transvertem-se em democracias de ocasião e obliteram a razão de uns e outros: os próprios países, seus sócios-contendores e também os seus rivais. Nem filosofia, humanismo, sensibilidade, estética, justiça, pacifismo ou cultura como qualidade de vida. O implacável jugo dos interesses financeiros e seu avançar puro, desprovido de objetivos outros que não sua própria concretização – essa dicotomia entre o real e o ideal – é imune ao descrédito e agradece o silêncio dos seus críticos.

O Estado moderno só cuida do valor da moeda, e busca obter consentimento entorpecido para essa cruzada. Cidadania só para consumidores. A crítica é taxada de vocação anticomercial e anti-financeira de parte da sociedade, seus idealistas utópicos, românticos dos valores anti-usura. Cresce a casca grossa da desconfiança sobre uma argumentação prudente. O conhecimento e a arte retraídos aos guetos. A arbitração do mercado investida do poder da verdade. A política como mero manejo de valores. A baixa estética da ética.

A forma atual de conduzir o mundo prepara os excessos e os horrores do que vem pela frente. O murmúrio não assimilado da dissidência democrática, o senso de interesse prevalecendo sobre o de dever, a devastação geral da natureza e das cidades, encontrarão sua expressão kamikaze nos próximos anos.

Aos tempos do conforto e excesso na economia quando ausentes os saudáveis vieses sociais e políticos, seguem inadvertidas épocas de pavor. A pujança econômica só consolida sociedades baseadas na produção, escolaridade, vigor cientifico e distribuição de riqueza.

É cada vez maior a presença da autoridade da superstição especulativa e do ataque à razão circulando pela política. Esses caricatos Voltaires e Montesquieus da democracia despótica de um mundo sem cultura. Aí predominam Estados de Corporações, não de Nações. Não importa sobre que valores se sustentam o prestigio e a notoriedade, a longevidade e a qualidade dos seus bens, da arte, literatura, música, educação, hoje cada vez mais dinamizadas por estratégias de pasteurização de gostos e virtudes. A operação é para extrair o nervo crítico do homem livre. Aliená-lo, desconstruindo, assim, as referências morais coletivas que concederam algum dia sentido e coesão às diferentes sociedades.

O subproduto dessa universal simplificação é a assustadora diminuição do interesse pela política. Com a substituição gradativa da participação, pela desdenhada delegação de poder, funda-se o despotismo-democrático na inércia da sociedade dos dias atuais. Sem disposições morais e coletivas bem compreendidas e sem entender o caráter socialmente útil da virtude só resta aos cidadãos o seu próprio temperamento, apático ou violento.

Somente a imprudência bancária está protegida. Na sua busca por maiores ganhos e estimulados pelo Estado para fazer circular o dinheiro fácil e o consumo a crédito, temos a solução entendida assim: o sistema financeiro leva o capitalismo às classes mais baixas e é financiado de forma socialista pelos bancos centrais. Controla-se o pânico no mundo econômico sustentando a ilusão da fartura, sem cerimônia.

O temerário é subjugar as conjecturas de futuro às paixões do presente. A falta de temor diante da complexidade do mundo pode levar a outros passos em falso, já então incontroláveis. Em tal situação, não é possível prever a impetuosidade dos desesperados.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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